quarta-feira, 4 de agosto de 2021

ENTREVISTA: IVO MILAZZO


Ivo Milazzo. Foto: Divulgação

Por Lu Vieira

Ivo Milazzo, artista italiano nascido em 1947, começou a trajetória nos quadrinhos em 1971 desenhando para revista Horror, colaborando também com histórias de Tarzan, Diabolik e Silvestro. A parceria com Giancarlo Berardi, em 1974, resultou no nascimento de Ken Parker, um personagem humano e imperfeito que iria revolucionar os quadrinhos ocidentais. Seus desenhos são o espetacular encontro de uma extrema síntese gráfica com uma narrativa transbordante de sentimentos! A minha vida não seria a mesma sem ele, toda a minha existência está entrelaçada à obra do Ivo! 

Foto: Acervo Lu Vieira
E foi lá em 2015, no saudoso café Cartum, justamente por desfilar com um desenho do Ken Parker no corpo que conheci o Celso Augusto Schröder, editor da Grifo (onde essa matéria foi originalmente publicada - leia AQUI).  Anos depois, Schröder me convidaria para ser colaboradora da Grifo. Viram, só?! Estou no Grifo por causa do Ivo, e por estar no Grifo entrevistei o Ivo! 
.....
Ivo, a pandemia mudou a forma como nos relacionamos e produzimos. Quais os reflexos disso em ti como artista?

Quando a Covid-19 se propagou na Itália, em 2020, eu estava empenhado em realizar a graphic novel que coloquei numa gaveta da minha mente por cerca de vinte anos, uma história centrada na figura de Tina Modotti.

Como já me aconteceu em outros casos, Tina o Maria,  não é uma biografia, mas um ponto de vista para induzir o leitor a refletir sobre os controversos acontecimentos existenciais dessa protagonista do século XX e sobre a própria vida.

Portanto, os efeitos restritivos da pandemia pouco incidiram nos meus ritmos de vida, também graças ao fato de eu morar em uma cidadezinha na Riviera da Ligúria, onde as distâncias são reduzidas a uma dimensão humana.

No término da obra, no início de 2021, as vacinas foram chegando pouco a pouco e a situação melhorando gradativamente.

Arte: Ivo Milazzo

Em nível geral, certamente há eventos extraordinários que podem alterar os hábitos da população, arruinando o dia a dia das pessoas que se sustentam com os recursos da sua própria criatividade.

Essa pandemia já era prevista pelos estudiosos, justamente pelos hábitos insanos ​​do homem que há muito tempo vêm alterando os frágeis equilíbrios naturais.

Resta a esperança de que esta adicional campainha de alarme da Natureza possa servir para se repensar esse persistente sistema consumista anômalo em mecanismos mais sábios para a conservação da Criação, pelos quais nós, humanos, estamos de passagem, embora produzindo enormes danos em um curtíssimo período existencial. 

Nós, artistas, em nível criativo, temos um ofício belíssimo que nos torna afortunados independentes de horários ou crachás, mas também de assistência à saúde, férias e verbas rescisórias!

Arte: Ivo Milazzo

Na realidade, o nosso recurso permanece absolutamente fruto do nosso trabalho, que comercialmente permanece apenas de nossa propriedade por longo tempo, mesmo depois de nós. 

E isso é ótimo, senão único! Somente nós para estabelecermos como nos relacionar com ele.

O início pode ser complicado, mas, se tivermos talento, podemos realizar coisas impensáveis. Em caso contrário, podemos ainda ser capazes de tornar reais as imagens da nossa mente por meio dos esforços desenvolvidos no aprendizado de uma técnica apropriada às habilidades individuais.

O momento no Brasil é devastador: genocídio da população, opressão, censuras, ameaças... Pra ti, qual é o papel do artista em momentos de opressão como esse?

A disparidade econômica entre quem tem muito e quem não tem nada (a pandemia fez o poder econômico dos habitantes do planeta deslizar de 8% para 1%, com poucos indivíduos que possuem tanto dinheiro quanto o PIB de todas as nações  presentes na Terra) está degenerando em ditaduras e divisões geopolíticas potenciais com terríveis consequências para os povos mais fracos da América do Sul, África e Oriente Médio.

Arte: Ivo Milazzo

Os frágeis equilíbrios para a proteção das pessoas menos abastadas, alcançados a duras penas após a última guerra mundial, foram rapidamente triturados sob o fascínio mais recente de globalização e tecnologia digital, hipóteses de progresso das possibilidades infinitas, mas, em geral, concebidas de modo errado, sempre a favor de muito poucos.

Na situação atual, o Brasil está vivendo uma tragédia pessoal que, em breve, repercutirá em todo o mundo. As míopes estratégias utilitaristas de alguns políticos, certamente não a favor da Natureza e dos seres vivos, podem provocar futuras guerras e pandemias. 

Por intermédio da sua obra, em todas as formas criativas possíveis, o artista pode tratar de temáticas que sensibilizem o público na tentativa de romper – graças à Cultura – o círculo vicioso do Lucro, de forma asséptica a partir da interpretação dos meios de comunicação. 

Arte: Ivo Milazzo

Eles são sempre propriedade de alguém, mas nós temos a sensível capacidade de reconstruir a realidade dos fatos por meio de uma pesquisa aprofundada. 

Mais cedo ou mais tarde, o significado das mensagens sempre chega, independente de quem tente limitar o “conhecimento” na tentativa de dividir o mundo com voracidade famélica.

E a Cultura é uma lente de aumento livre de mentiras para a compreensão  da Verdade.

Ken Parker é uma obra que nos faz pensar, mostra injustiças, lutas por igualdade e equidade... "Greve", publicada em 1984, é o ponto alto disso. Estamos vivendo retrocessos inacreditáveis nos direitos trabalhistas, aumento da concentração de renda etc. Qual é o teu sentimento, mesmo depois de quase 40 anos, de "Greve" ainda ser tão necessária e atual?

Arte: Ivo Milazzo 

Parece-me que grande parte das novas gerações está demonstrando aquela sensibilidade já mencionada, mediante ações específicas destinadas a obter o devido respeito pelo seu futuro por parte de um certo insaciável Poder econômico e político.

No entanto, é igualmente desagradável constatar como, neste momento difícil, muitas pessoas não conseguem perceber a diferença entre o Real e a Ficção, pois a Verdade é muitas vezes instrumentalizada a favor de uma ou de outra, em detrimento da consciência individual que apenas uma aprofundada conscientização pode formar.

Uma pesquisa recente confirmou o quanto as notícias falsas se espalham de modo particular e mais rapidamente do que as verdadeiras. A conhecida teoria do fascínio do “Mal” e de quanto ele é, portanto, mais envolvente do que o “Bem” (uma vez estabelecido o que um ou outro é...!)

As massas trabalhadoras, seja qual for a forma que se expressem, têm direitos imprescindíveis no que respeita à dignidade humana e laboral. A interpretação das teorias marxistas sobre “mais-valia” tem produzido visões antitéticas sobre a consequente distribuição econômica, em presunções conceituais tendenciosas, nas quais com frequência a liberdade individual e o respeito pelo aporte laboral tornam-se críticos.

Em teoria, muitos países estabeleceram, com os Direitos Humanos e suas respectivas Constituições, que tais pressupostos são imprescindíveis, enquanto outros os desconhecem de alguma forma, com as consequentes respostas empresariais inadequadas ou de deslocalização.

Arte: Ivo Milazzoo

Na prática, resta a expansão contínua da disparidade econômica que tem gerado novas formas de escravidão para a sobrevivência de muitos, onde até fazer greve pelos próprios direitos se torna impensável, apesar de este ato permanecer para o trabalhador o único resgate de si mesmo como “pessoa”.

Infelizmente, hoje, é predominante o desprezo pela vida humana de quem está em dificuldade ou por razões étnicas (de novo!), que nenhuma compaixão de origem latina jamais poderá extinguir.

Os interesses de parte dos Poderosos impedem, aparentemente, a aplicação de ações salvadoras concretas para uma verdadeira compaixão. O que é desconcertante é o compartilhamento aberrante de tais conceitos por tantos “conservadores”, na extenuante defesa de uma pequena horta “impermanente”. 

Arte: Ivo Milazzo
Tu és um dos artistas que mais me influenciaram, não só tecnicamente, mas também sobre como a arte pode transformar a vida e a visão de mundo das pessoas. Qual a tua expectativa com a republicação de Ken Parker no Brasil e o alcance de jovens leitores?

Ken Parker procurou desenvolver, narrativamente, uma determinada missão através da sensível complementaridade criativa dos seus autores, como filhos de uma certa época. 

A bondade da história e de alguns argumentos é demonstrada pela discreta atenção que as atuais gerações de leitores sempre reservam para as novas reproposições editoriais do personagem em diversos países. 

No Brasil, as histórias de Ken Parker saem isoladamente há anos em uma edição limitada de qualidade, adquirível por assinatura, produzida com paixão pelos queridos amigos Rosana e Wagner Augusto, tentando resistir aos altos e baixos do mercado.

Recentemente, chegaram algumas propostas empresariais para uma edição cronológica com a combinação de dois episódios em volume de capa dura. Exatamente como a Mondadori Comics os editou na Itália, em 2014, dando origem ao episódio conclusivo "Até onde chega a manhã". Veremos...

Quanto a mim, levei muitos anos para compreender a verdade sobre o meu trabalho como autor. Quanto a desenhar, escrever, fazer música ou cinema, são meios extraordinários para entrar em ressonância com o usuário desconhecido e consigo mesmo.

Arte: Ivo Milazzo

Como é essencial conhecer os próprios deveres e direitos éticos e morais, além daqueles jurídicos, para se relacionar de forma equilibrada com o próximo, produtor ou colega. Só desse modo é possível ter consciência do quanto somos responsáveis ​​pelo nosso futuro, criativo e de vida, sem falsos álibis de hipotéticas “culpas” alheias.  

Quais são os artistas brasileiros que tu mais acompanha e admira?

Seja na Itália, seja em outros países, confesso que há algum tempo tenho dificuldade em acompanhar a produção de histórias em quadrinhos por falta de conteúdos e equilíbrio criativo na realização das diferentes propostas editoriais.

Sem dúvida, o hábito de uma determinada formação visual e de leitura condiciona esse julgamento pessoal conteudista, independentemente das habilidades indiscutíveis dos colegas. Acompanho de vez em quando, na revista mensal Internazionale, as tiras de sátira sociopolítica da amiga Laerte.

Então, lamento não poder satisfazer essa curiosidade com senso de causa.

Arte: Ivo Milazzo
Tu tiveste a tua liberdade de criação e expressão limitadas dentro do mercado de quadrinhos? Como foi pra ti percorrer o caminho de um trabalho autoral?

Estabelecido o target de referência do empresário/produtor/editor do momento, acho que raramente sofri quaisquer limitações à liberdade de expressão pessoal.

No início de Ken Parker, uma vez Sergio Bonelli me pediu para cobrir a bunda de uma mexicana nua que saía do rio. Depois, nunca. 

No entanto, ao realizar histórias de personagens criados por outros, estabeleci desde logo um equilíbrio narrativo com o editor de plantão, em respeito à história editorial do personagem e à minha história criativa. O respeito recíproco é essencial para realizar um produto equilibrado. Por ‘equilíbrio’ entendo uma obra satisfatória para o leitor nos conteúdos e estimulante em possíveis reflexões.

A serialidade foi um mecanismo complexo de aprender, com grandes possibilidades de crescimento criativo como também de repetição nas lógicas perversas de publicação.

Em 2003, decidi empreender um caminho diverso para novos estímulos em diferentes encontros sobre projetos e de maior pesquisa pessoal, com o impensável resultado de conhecer e colaborar com o diretor Ettore Scola para a graphic novel "Um dragão em forma de nuvem", extraída de um filme dele não realizado por escolha pessoal.

Ficaria realmente feliz se os livros produzidos nessas experiências também pudessem ser compartilhados por leitores brasileiros.

Um dom criativo tem necessidade de ser cultivado e aprofundado para uma verificação concreta da capacidade individual de engenhosidade. Estar satisfeito significa, em termos literários, “limitar” a si mesmo e perseverar em alguma coisa que, talvez, satisfaça a parte racional de si. Aquela das “necessidades” concretas, que em geral são criadas pelo inconsciente com falaciosas “necessidades preestabelecidas indispensáveis”.

Mas essa é uma outra história.

Arte: Ivo Milazzo

domingo, 29 de novembro de 2020

KP #59 Os Garotos de Donovan

Arte: Ivo Milazzo
A reunião virtual de fãs de Ken Parker, fumetti/HQ italiano que é item de devoção do Diário Kenparkerniano, grupo formado no WhatsApp que se organizou com a intenção de cronologicamente reler e debater todos os episódios da epopeia western, também é relatado aqui no Ken Parker Blog

Confira a trilha sonora de Ken Parker

— Ken Parker "Os Garotos de Donovan". Argumento: Giancarlo Berardi / Roteiro: Maurizio Mantero — Desenhos: Carlo Ambrosini. Publicada originalmente pela Editora Tapejara em Janeiro de 2007.

Arte: Carlo Ambrosini
Depois do incidente em Boston, quando ao proteger uma criança durante uma greve/protesto de trabalhadores de um indústria têxtil, Ken Parker mata o policial civil James O'Grady, o ex-investigador da Agência National passa a ser procurado pelo suposto crime. E nessa rota de fuga ele encontra "Os Garotos de Donovan", a qual é gravemente ferido por um tiro de arma de fogo, ele é acobertado pelo bando no subsolo de um sobrado em ruínas. O ex-chefe de Ken, Alec Browne, oferece uma recompensa de U$S 1mil (depois ampliada para U$S 2 mil) por informações que levem a polícia local até o seu esconderijo.  

Arte: Carlo Ambrosini
O pequeno bando de delinquentes comandado por Donovan O'Hara, 15 anos, conta ainda com alguns órfãos e jovens de famílias pobres do subúrbio de Boston, entre eles estão — Mikis, Jerzy, Lars, Andy, Julian e apenas uma menina, Diana, que integralmente se dedica a cuidar do fugitivo ferido. Mario Molinari, que trabalhou como enfermeiro num reformatório, é incumbido de extrair o projétil alojado próximo à coluna cervical de Ken Parker, e assim é aceito no bando de Donovan.      

Arte: Carlo Ambrosini
"Os Garotos de Donovan" nos joga dentro da desolação da periferia de Boston — a pobreza que prolifera à margem da urbe; a falta de perspectivas dos imigrantes; violência infantil;  exploração à classe trabalhadora; além de cenários que nos levam à lembrança de "The Grapes of Wrath/As Vinhas da Ira" (1939), de John Steinbeck, que apenas poucos meses depois, em 1940, foi adaptado por John Ford para o cinema. Ambientado durante a época da Grande Depressão (década de 1930), o livro/filme ainda é amplamente discutido e celebrado como um dos grandes romances americanos do Século XX, com parte da crítica acusando o escritor de realizar uma propaganda velada ao socialismo. "Os Garotos de Donovan" ocorre cerca de 50 anos antes desse espectro de tempo, em 1879, e assim como em "Greve", novamente Giancarlo Berardi nos leva sem escalas numa indigesta viagem ao lado obscuro da sociedade bostoniana. Nada pode ser mais "Vinhas da Ira" do que o último quadro desenhado por Carolo Ambrosini na página 30 (tomando por base a edição da Editora Tapejara), assim como a sequência na página 31 — retratos da absoluta pobreza em que estão inseridos os personagens. Outra memória evocada pelo roteirista está em "Oliver Twist" (1837), romance do escritor inglês Charles Dickens, fenômeno da delinquência provocada pelas condições precárias da sociedade britânica na primeira metade do Século IXI, primeiro romance inglês protagonizado por uma criança.  

Arte: Carlo Ambrosini
Um dos principais dramas expostos em "Os Garotos de Donovan" está representado na figura de Leszec Kovalsky, o pai de Mikis, trabalhador que busca reparo trabalhista, ao solicitar uma pensão vitalícia após perder uma de suas mãos. A empresa, representada por um advogado da metalúrgica onde trabalha, propõe um acordo com pagamento de ínfimos U$S 50 de indenização. A questão vai aos tribunais, quando percebemos novamente que a justiça nem sempre está de plantão nas histórias da saga Ken Parker, reflexo e reprodução de um microcosmo da vida real. 

"Os Garotos de Donovan" ainda expõe a humanidade, o altruísmo e a dignidade do grupo de trombadinhas, jovens em situações de rua que muitas vezes são estigmatizados pela sociedade, mas se mostram incorruptíveis e importantes aliados na recuperação de Ken. 

Arte: Carlo Ambrosini
Uma curiosidade: após duas interrupções da série original da publicação aqui no Brasil — a primeira em 1983 (Editora Vecchi). e a segunda em 1990 (Editora Best News), mais de 20 anos depois, finalmente a 'primeira temporada' da epopeia iniciada em 1978 é concluída no país. Um tempo longo demais, marcado por confusões editoriais — interminável teste de fogo para os pacientes fãs de Ken Parker.

Próximo episódio a ser debatido no grupo: "Um Príncipe para Norma"  

Arte: Carlo Ambrosini

terça-feira, 24 de novembro de 2020

KP #58 Greve

Arte: Ivo Milazzo

A reunião virtual de fãs de Ken Parker, fumetti/HQ italiano que é item de devoção do Diário Kenparkerniano, grupo formado no WhatsApp que se organizou com a intenção de cronologicamente reler e debater todos os episódios da epopeia western, também é relatado aqui no Ken Parker Blog

Confira a trilha sonora de Ken Parker

— Ken Parker "Greve". Argumento/roteiro: Giancarlo Berardi — Desenhos: Ivo Milazzo. Publicada originalmente pela Editora Tapejara em Dezembro de 2006. 

Arte: Ivo Milazzo
"Greve" é um dos episódios decisivos na vida de Ken Parker. Os acontecimentos no protesto em Boston, ao qual o investigador da Agência National salva uma criança de ser assassinada por um policial, mudariam sua vida e definiriam seu destino nos anos seguintes. Como agente infiltrado na J. Troust & Co. Textille Mill, Ken é designado a descobrir no quadro de funcionários a identidade secreta do líder sindical que atua na indústria têxtil. Durante seu trabalho de investigação, ele é testemunha de atos de xenofobia, preconceito, corrupção, exploração trabalhista, violência policial, assédio moral e sexual, entre outras situações inaceitáveis. Com seu imutável espírito de paladino anônimo da justiça, Ken Parker não passará incólume pela Troust & Co. 

Arte: Ivo Milazzo
O debate em “Greve” começa por uma das mais sensacionais capas ilustradas por Ivo Milazzo, baseada na obra "O Quarto Estado" (em italiano: Il Quarto Stato), uma pintura a óleo sobre tela (293×545 cm) do pintor italiano Giuseppe Pellizza da Volpedo (1868-1907), concluída em 1901 e conservada no Museo del Novecento em Milão. "Il Quarto Stato" descreve um grupo de trabalhadores em marcha durante protesto numa praça, presumivelmente a Malaspina de Volpedo. A intenção de Pellizza foi dar vida a <<uma massa popular, de trabalhadores inteligentes, fortes, robustos, unidos como torrente esmagadora de quaisquer obstáculos que surgem para atingir o lugar onde encontra o equilíbrio>>. Acima dessa intenção, o artista plástico, conhecedor dos conceitos de Marx, Engels e Bebel, consegue ilustrar em "O Quarto Estado" um impressionante quadro social que representa o avanço da força  operária frente às injustiças sociais.

Arte: Ivo Milazzo
"Greve" se apropria de inúmeras análises marxistas, ainda que no olhar inocente do personagem — que pode ser visto na página 74 (tomando por base a edição da Editora tapejara) lendo "O Capital" de Karl Marx. O roteirista anda expõe o capitalismo e sua nocividade à classe trabalhadora, um importante contraponto e alerta àqueles que cometem o grave erro de associar capitalismo e democracia. De forma didática, mas afastado de uma visão academista, podemos constatar o irrecuperável equívoco do cidadão médio ao qualificar e naturalizar a desigualdade social. Anacrônico ao contexto histórico da segunda metade do Século XIX, "Greve" utiliza o pano de fundo fictício de uma fábrica têxtil estadunidense para abordar temas extremamente atuais e relevantes, entre eles os direitos humanos e trabalhistas. Como nos ensina Paulo Freire, —  num mundo desigual, a verdade só pode ser encontrada quando a encaramos pela ótica dos oprimidos.

Arte: Ivo Milazzo
É nesse episódio que o leitor encontra um pontos altos da parceria entre Giancarlo Berardi e Ivo Milazzo, o monstro de duas cabeças e quatro mãos que forjou o caráter de Ken Parker — "Greve surgiu no momento em que todas as fábricas da Ligúria [região localizada no Nordeste da Itália] estavam fechando. Parecia-me que os trabalhadores haviam perdido sua identidade histórica, que haviam esquecido o que significava a luta dos trabalhadores no início do século. Era uma história que eu queria escrever e da qual gostaria que outros também se envolvessem. A história não foi ignorada, recebi muitas cartas e telefonemas", disse Berardi em entrevista a Michele Ginevra, em outubro de 1992.

Arte: Ivo Milazzo
Entre os personagens abordados, destaque para o Padre O'Hara, abnegado religioso que inspira e colabora com a comunidade, mas é transferido para uma cidade do interior no intuito de não interferir na sistemática corruptiva de Jay Troust, proprietário da indústria têxtil e provável doador de recursos para o Bispo de Boston. Sem a aprovação de seu pai, o filho de Joe Troust, Cristopher, se envolve com Elizabeth Donell, que morre atropelada na Market Street (leia-se assassinada com objetivo de dar fim ao romance do casal). "Greve" ainda nos lembra da importância do jornalismo como ponto de equilíbrio na sociedade para denúncias e análises de injustiças sociais. O fantasma do comunismo é relembrado por Alec Brown, inimigo que, segundo ele, precisa ser combatido. Com dois meses de investigação nas costas, longe do filho e desconfortável em presenciar tantas injustiças, violência e exploração, Ken Parker pede ao chefe imediato para abandonar a investigação, mas é convencido por Brown a finalizar seu trabalho. Contudo, quando a direção da J. Troust & Co. Textille Mill decide reduzir os salários em 25%, com a desculpa de manter os cargos de cada funcionário e não efetivar o temido corte dos empregos, o desfecho de "Greve" é deflagrado. 

Arte: Ivo Milazzo
"Greve" é um episódio claustrofóbico, muitas vezes incômodo ao leitor desavisado, uma simbologia que pode ser materializada na onomatopeia das imparáveis e barulhentas máquinas da indústria têxtil, signo da sensação infernal de estar ocupando uma posição naquela trincheira. A morte de um dos funcionários, Richard Teodakis, que presencia o assédio sexual de uma colega, narrada na página 47, quando lançada pela primeira vez, pela Cepim, teve os dois últimos quadrinhos invertidos na configuração gráfica da página. A Parker Editore corrigiu o equívoco, e a reedição da Panini também foi retificada. Infelizmente a primeira edição nacional em 2006 repete o erro da Cepim. Nada que macule uma das mais sensacionais (e necessárias) narrativas vividas por Ken Parker. A primeira temporada de sua jornada está chegando ao fim...

Próximo episódio: "Os Garotos de Donovan"  

Arte: Ivo Milazzo

Arte: Ivo Milazzo

domingo, 22 de novembro de 2020

KP #57 O Sicário

Arte: Ivo Milazzo
A reunião virtual de fãs de Ken Parker, fumetti/HQ italiano que é item de devoção do Diário Kenparkerniano, grupo formado no WhatsApp que se organizou com a intenção de cronologicamente reler e debater todos os episódios da epopeia western, também é relatado aqui no Ken Parker Blog. 

Confira a trilha sonora de Ken Parker

— Ken Parker "O Sicário". Argumento/roteiro: Giancarlo Berardi — Desenhos: Sergio Tarquinio. Publicada originalmente pela Editora Tapejara em Novembro de 2006.

Arte: Sergio Tarquinio
Sem ter nenhuma noção da relação entre os fatos, Ken Parker conhece na Estação Ferroviária de Boston Gus Stowe, o sicário que acaba de assassinar um Senador da República. Eles dividem a mesma cabine no trem, onde Stowe mente a Ken que foi roubado por delinquentes e que procura se instalar em Concord para fugir da agitação das grandes cidades. Como profissional da Agência National, Ken Parker foi contratado para trabalhar como segurança na mansão de um banqueiro na cidade vizinha a Boston, mesmo local onde em apenas duas semanas irá ocorrer o casamento da filha do proprietário, Debbie Gladstone. Indicado pelo investigador, Gus Stove é contratado para atuar como cocheiro na caleça da noiva. 

Arte: Sergio Tarquinio
A trama política e bastidores do assassinato do Senador Barton Hale, em Boston, são o pano de fundo que se conecta ao casamento de Robert Carey e Debbie Gladstone em "O Sicário". A história se passa em Concord, uma pequena cidade localizada a pouco menos de 50 quilômetros de Boston, berço de grandes nomes da literatura norte-americana como Ralph Waldo Emerson, Henry David Thoreau e Louisa May Alcott. É também em Concord que está localizado o Lago Walden, imediações onde Thoreau se isolou e morou durante dois anos, vividos numa casa construída com as próprias mãos, dentro da floresta. Hoje o local é um parque nacional dedicado à memória do escritor. 

Arte: Sergio Tarquinio
Contudo, essa ligação literária e a conexão com a natureza ou o Lago Walden inexistem em "O Sicário". A única menção literária nos traz Ken lendo um livro com título indefinido no segundo quadro da página 62. Todo o enredo se decorre praticamente nas imediações da mansão dos Gladstone. Assim o leitor percebe tramoias políticas; as reais motivações do casamento arranjado entre Robert e Debbie; a involuntária ingenuidade da noiva e o papel secundários ao qual muitas mulheres eram subjugadas na segunda metade do Século XIX; além das perspicazes investigações isoladas entre ambos os contratados, Ken Parker e Gus Stowe, movimento que leva a dupla até a consequente elucidação dos fatos.   

Arte: Sergio Tarquinio
Em "O Sicário" temos o retorno do mais criticado dos materializadores do personagem criado por Giancarlo Berardi e Ivo Milazzo, o ilustrador Sergio Tarquinio. A desproporcionalidade dos corpos, objetos — os rostos inexpressivos, Tarquinio ainda parece uniformizar certos personagens e cenários, o que muitas vezes confunde o leitor. De todo o modo, 10% das páginas de "O Sicário", exatamente 10 delas, descrevem a ação sem o uso de uma única legenda, onomatopeia ou diálogo, opção narrativa que oportuniza ao desenhista também demonstrar suas qualidades — clareza em revelar pormenores e o exercício das movimentações dos personagens, além da perfeição elucidativa exposta na perícia do seu chiaro e scuro. 

Próximo episódio: "Greve"

Arte: Sergio Tarquinio

Arte: Sergio Tarquinio

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

KP #56 A Propósito de Joias e Trapaças

Arte: Ivo Milazzo 
A reunião virtual de fãs de Ken Parker, fumetti/HQ italiano que é item de devoção do Diário Kenparkerniano, grupo formado no WhatsApp que se organizou com a intenção de cronologicamente reler e debater todos os episódios da epopeia western, também é relatado aqui no Ken Parker Blog

Confira a trilha sonora de Ken Parker

— Ken Parker "A Propósito de Joias e Trapaças". Argumento: Giancarlo Berardi / Roteiro: Maurizio Mantero — Desenhos: Carlo Ambrosini. Publicada originalmente pela Editora Tapejara em Outubro de 2006.

Arte: Carlo Ambrosini
O Boston Mirror, periódico de Boston, anuncia a passagem pela cidade de um casal de aristocratas europeus pela cidade. Sabe-se, que durante as viagens da Duquesa Romanoff, é rotineiro que seu marido, o Conde Vassiliev, adquira compulsivamente diamantes e joias para agradar sua esposa. E quando o jornal The Boston Mirror anuncia que o casal confirmou presença no Star Theatre, onde assistirá o première de "O Contrato de Casamento", ópera de Gioachino Rossini, uma série de joalheiros bostonianos se espalha pelos camarotes do teatro na intenção de chamar a atenção da Duquesa. 

Arte: Carlo Ambrosini
"A Propósito de Joias e Trapaças" traz o retorno de Gordon, um trapaceiro charmoso que conhecemos em "Histórias de Armas e Trapaças", episódio #20 (relembre AQUI notaram a semelhanças nos nomes e na forma de como foi batizado cada HQ, além da repetição da palavra 'trapaça'?  Nem ao menos o sobrenome de Gordon é conhecido pela polícia, assim como talvez Gordon também seja apenas um nome falso. Após o incidente no teatro, Ken Parker é designado pela Agência National para ser o guarda-costas de Tex Ritter, um fazendeiro do Texas de passagem por Boston, e Linda Evers, sua acompanhante. Na trama, acompanhamos o envolvimento de Tex com Gordon, que utiliza o nome falso de Steve Harrison  e se identifica como proprietário de uma mineradora de pedras preciosas na Califórnia.   

Arte: Carlo Ambrosini
"A Propósito de Joias e Trapaças" nos alça a memória as tramoias de Henry Gondorff (Paul Newman), em "The Sting/Golpe de Mestre" (1973), de George Roy Hill. Giancarlo Berardi aproxima essa lembrança quando um dos golpes de Gordon tem como artimanha o aluguel de um prostíbulo como suposto consulado holandês. No filme, uma falsa casa de jogos é montada num imóvel abandonado. Inclusive a própria figura de Gordon nos lembra fisicamente Paul Newman. O protagonista da história não é Ken Parker (ele está em apenas 43 das 100 páginas da HQ), mas sim o simpático Gordon, pivô da trama, o bandido sedutor, inteligente e que praticamente não usa a violência em seus delitos. Estamos falando de um estrategista, não de um delinquente sanguinário. 

Arte: Carlo Ambrosini
O encontro de Gordon e Linda no Parque de Diversões é perfeitamente ilustrado por Carlo Ambrosini nas páginas 52, 53 e 54 (tomando por base a edição da Editora Tapejara), num resumo romântico diversão, ternura, encanto sensação que pode ser simbolizada como futura aliança com o desfecho revelado no último quadro, onde vemos um spoiler do final, com o casal de mãos dadas. Não é difícil para Gordon ganhar o coração de Linda, subjugada por Tex, pois ao mesmo tempo que o fazendeiro a mima com inúmeros presentes e uma certa liberdade, a trata como uma mulher volátil, não como o amor da sua vida, mas apenas como um troféu na sua galeria de conquistas. 

Arte: Carlo Ambrosini
Nas entrelinhas e no decorrer da trama,  Ken Parker, coadjuvante de luxo em "A Propósito de Joias e Trapaças", atua na resolução do enrosco entre Gordon e Tex, numa suposta parceria envolvendo uma carga de diamantes. Observador, perspicaz, e o cabeça dura de sempre, Ken mostra talento e um invejável esforço braçal no decorrer da investigação.

Próximo episódio: "O Sicário" 

Arte: Carlo Ambrosini

Arte: Carlo Ambrosini

sábado, 14 de novembro de 2020

KP # 55 Assalto à Luz do Dia/Assalto na Reginald Street

Arte: Ivo Milazzo
A reunião virtual de fãs de Ken Parker, fumetti/HQ italiano que é item de devoção do Diário Kenparkerniano, grupo formado no WhatsApp que se organizou com a intenção de cronologicamente reler e debater todos os episódios da epopeia western, também é relatado aqui no Ken Parker Blog

Confira a trilha sonora de Ken Parker

— Ken Parker "Assalto à Luz do Dia/Assalto na Reginald Street" (Best News/Tendência). Argumento: Giancarlo Berardi / Roteiro: Maurizio Mantero — Desenhos: Sergio Tarquinio. Publicada originalmente no Brasil em Fevereiro de 1990/Editora Best News

Arte: Sergio Tarquinio
Contratado por Alec Browne como investigador na Agência National em Boston, Ken Parker é um dos responsáveis pela salvaguarda no transporte de U$S 50 mil, valor referente à folha de pagamento da Holdaway Company. Além de um forte esquema de segurança, ao seu lado, o novato conta com a experiência de Jack Olsen, um ex-policial aposentado familiarizado com a específica missão que ocorre todos os meses. Contudo, a escolta sofre um atentado na Reginald Street e o dinheiro é levado, além do incidente causar a morte de vários integrantes da equipe, entre eles, o próprio Olsen. Com a ajuda do Tenente Robinson, oficial investigador da Polícia de Boston, Ken é designado pela Agência National a capitanear as investigações sobre o roubo na Reginald Street. 

Arte: Sergio Tarquinio
Depois da riqueza do episódio "Boston", com todo o seu rol de referências e a celebrada volta às bancas brasileiras da dupla Giancarlo Berardi e Ivo Milazzo, um autêntico retorno triunfal de Ken Parker após sete anos fora do circuito dos quadrinhos nacionais, "Assalto à Luz do Dia", segunda publicação da Editora Best News (ou Assalto na Reginald Street, rebatizada pela Tendência na década seguinte, colando no título original italiano), nos passa uma estranha sensação de anticlímax. Apesar de ainda vivermos a ambiência de celebração dessa volta à ativa, com destaque para a contracapa interna onde a Best News repercute todo o barulho que a imprensa nacional anuncia o regresso de Ken, com trechos de reportagens assinadas por Marcel Plasse (O Estado de São Paulo), Jotabê Medeiros (Folha de São Paulo) e André Forastieri (Folha de São Paulo), entre outros, Sergio Tarquinio não é o mais celebrado dos ilustradores que atuaram na saga de Rifle Comprido. Além disso, a história escrita a quatro mãos (com auxilio de Maurizio Mantero, o mais fiel dos colaboradores de Berardi) apresenta uma trama confusa, com uma profusão de personagens, diálogos ensossos e desenhos pouco inspirados de Tarquinio.   

Arte: Sergio Tarquinio

"Assalto à Luz do Dia/Assalto na Reginald Street" seguramente pode ser alinhada na lista das mais fracas aventuras vividas por Ken Parker, espécie de première de um caminho ao qual Berardi iria evoluir substancialmente anos depois com Julia Kendall, até hoje seu maior sucesso comercial. A grande novidade do episódio passa pela grande experiência urbana de Ken Parker, agora um morador de Boston, cidade onde também vive Teddy Parker, seu filho, e Belle McKeever, a tutora do garoto. O emprego na Agência de Investigação National possibilita uma proximidade de seu filho, além de oferecer uma nova experiência profissional ao ex-scout, um homem acostumado aos grandes espaços e ao contato com a natureza, agora emoldurado pelo cerceamento de uma das cidades mais importantes dos Estados Unidos.  

Arte: Sergio Tarquinio
Contanto, se esperávamos conhecer sua nova rotina com o pai distante que pretende preencher as lacunas dessa ausência, quem sabe com possibilidades de o vermos em uma vida mais pacata e menos perigosa, "Assalto à Luz do Dia/Assalto na Reginald Street" nos joga no olho do furacão de uma investigação, onde pessoas são mortas e uma quantia considerável de dinheiro é roubada. É, as coisas nunca são fáceis para Ken! Seu desafio como investigador novato é compactuado com o leitor, quando as possibilidades de desenrolarmos a trama está emaranhada numa série de nomes. Quem teria planejado o roubo? Seria Neville Whatley, gerente do Boston First City Bank, um viciado em corridas de cavalos? Quem sabe Barbara, a filha de Olsen? Ou o mandante de tudo seria o Tenente Robinson, enredado romanticamente com Barbara? E afinal: qual a ligação de Morrow, um velho criminoso teoricamente aposentado com o caso? E a misteriosa Lois Thorp, qual o seu papel e ligação com os personagens ocultos na trama?

Arte: Sergio Tarquinio
Apesar da bela capa desenhada por Ivo Milazzo, nunca comece as apresentações de Ken Parker por "Assalto à Luz do Dia/Assalto na Reginald Street", se tomarmos por base o alto nível ao qual estamos acostumados — aqui temos uma história essencialmente comum e insalubre, longe de evidenciar as verdadeiras virtudes do personagem. E para selar essa sensação de anticlímax, novamente, num atrapalho envolvendo direitos autorais, a Best News não seguiria sua trajetória editorial com Ken Parker. Os fãs brasileiros precisariam aguardar mais uma década para finalmente concluírem a 'primeira temporada' da saga.    

Próximo episódio: "A Propósito de Joias e Trapaças"   

Contracapa interna da edição de "Assalto à Luz do Dia" lançada em fevereiro de 1990


A saga de Rifle Comprido contada pelo Blog

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