Ivo Milazzo. Foto: Divulgação |
Por Lu Vieira
Ivo Milazzo, artista italiano nascido em 1947, começou a trajetória nos quadrinhos em 1971 desenhando para revista Horror, colaborando também com histórias de Tarzan, Diabolik e Silvestro. A parceria com Giancarlo Berardi, em 1974, resultou no nascimento de Ken Parker, um personagem humano e imperfeito que iria revolucionar os quadrinhos ocidentais. Seus desenhos são o espetacular encontro de uma extrema síntese gráfica com uma narrativa transbordante de sentimentos! A minha vida não seria a mesma sem ele, toda a minha existência está entrelaçada à obra do Ivo!
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Foto: Acervo Lu Vieira |
Quando a Covid-19 se propagou na Itália, em 2020, eu estava empenhado em realizar a graphic novel que coloquei numa gaveta da minha mente por cerca de vinte anos, uma história centrada na figura de Tina Modotti.
Como já me aconteceu em outros casos, Tina o Maria, não é uma biografia, mas um ponto de vista para induzir o leitor a refletir sobre os controversos acontecimentos existenciais dessa protagonista do século XX e sobre a própria vida.
Portanto, os efeitos restritivos da pandemia pouco incidiram nos meus ritmos de vida, também graças ao fato de eu morar em uma cidadezinha na Riviera da Ligúria, onde as distâncias são reduzidas a uma dimensão humana.
No término da obra, no início de 2021, as vacinas foram chegando pouco a pouco e a situação melhorando gradativamente.
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Arte: Ivo Milazzo |
Essa pandemia já era prevista pelos estudiosos, justamente pelos hábitos insanos do homem que há muito tempo vêm alterando os frágeis equilíbrios naturais.
Resta a esperança de que esta adicional campainha de alarme da Natureza possa servir para se repensar esse persistente sistema consumista anômalo em mecanismos mais sábios para a conservação da Criação, pelos quais nós, humanos, estamos de passagem, embora produzindo enormes danos em um curtíssimo período existencial.
Nós, artistas, em nível criativo, temos um ofício belíssimo que nos torna afortunados independentes de horários ou crachás, mas também de assistência à saúde, férias e verbas rescisórias!
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Arte: Ivo Milazzo |
Na realidade, o nosso recurso permanece absolutamente fruto do nosso trabalho, que comercialmente permanece apenas de nossa propriedade por longo tempo, mesmo depois de nós.
E isso é ótimo, senão único! Somente nós para estabelecermos como nos relacionar com ele.
O início pode ser complicado, mas, se tivermos talento, podemos realizar coisas impensáveis. Em caso contrário, podemos ainda ser capazes de tornar reais as imagens da nossa mente por meio dos esforços desenvolvidos no aprendizado de uma técnica apropriada às habilidades individuais.
O momento no Brasil é devastador: genocídio da população, opressão, censuras, ameaças... Pra ti, qual é o papel do artista em momentos de opressão como esse?
A disparidade econômica entre quem tem muito e quem não tem nada (a pandemia fez o poder econômico dos habitantes do planeta deslizar de 8% para 1%, com poucos indivíduos que possuem tanto dinheiro quanto o PIB de todas as nações presentes na Terra) está degenerando em ditaduras e divisões geopolíticas potenciais com terríveis consequências para os povos mais fracos da América do Sul, África e Oriente Médio.
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Arte: Ivo Milazzo |
Na situação atual, o Brasil está vivendo uma tragédia pessoal que, em breve, repercutirá em todo o mundo. As míopes estratégias utilitaristas de alguns políticos, certamente não a favor da Natureza e dos seres vivos, podem provocar futuras guerras e pandemias.
Por intermédio da sua obra, em todas as formas criativas possíveis, o artista pode tratar de temáticas que sensibilizem o público na tentativa de romper – graças à Cultura – o círculo vicioso do Lucro, de forma asséptica a partir da interpretação dos meios de comunicação.
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Arte: Ivo Milazzo |
Mais cedo ou mais tarde, o significado das mensagens sempre chega, independente de quem tente limitar o “conhecimento” na tentativa de dividir o mundo com voracidade famélica.
E a Cultura é uma lente de aumento livre de mentiras para a compreensão da Verdade.
Ken Parker é uma obra que nos faz pensar, mostra injustiças, lutas por igualdade e equidade... "Greve", publicada em 1984, é o ponto alto disso. Estamos vivendo retrocessos inacreditáveis nos direitos trabalhistas, aumento da concentração de renda etc. Qual é o teu sentimento, mesmo depois de quase 40 anos, de "Greve" ainda ser tão necessária e atual?
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Arte: Ivo Milazzo |
No entanto, é igualmente desagradável constatar como, neste momento difícil, muitas pessoas não conseguem perceber a diferença entre o Real e a Ficção, pois a Verdade é muitas vezes instrumentalizada a favor de uma ou de outra, em detrimento da consciência individual que apenas uma aprofundada conscientização pode formar.
Uma pesquisa recente confirmou o quanto as notícias falsas se espalham de modo particular e mais rapidamente do que as verdadeiras. A conhecida teoria do fascínio do “Mal” e de quanto ele é, portanto, mais envolvente do que o “Bem” (uma vez estabelecido o que um ou outro é...!)
As massas trabalhadoras, seja qual for a forma que se expressem, têm direitos imprescindíveis no que respeita à dignidade humana e laboral. A interpretação das teorias marxistas sobre “mais-valia” tem produzido visões antitéticas sobre a consequente distribuição econômica, em presunções conceituais tendenciosas, nas quais com frequência a liberdade individual e o respeito pelo aporte laboral tornam-se críticos.
Em teoria, muitos países estabeleceram, com os Direitos Humanos e suas respectivas Constituições, que tais pressupostos são imprescindíveis, enquanto outros os desconhecem de alguma forma, com as consequentes respostas empresariais inadequadas ou de deslocalização.
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Arte: Ivo Milazzoo |
Na prática, resta a expansão contínua da disparidade econômica que tem gerado novas formas de escravidão para a sobrevivência de muitos, onde até fazer greve pelos próprios direitos se torna impensável, apesar de este ato permanecer para o trabalhador o único resgate de si mesmo como “pessoa”.
Infelizmente, hoje, é predominante o desprezo pela vida humana de quem está em dificuldade ou por razões étnicas (de novo!), que nenhuma compaixão de origem latina jamais poderá extinguir.
Os interesses de parte dos Poderosos impedem, aparentemente, a aplicação de ações salvadoras concretas para uma verdadeira compaixão. O que é desconcertante é o compartilhamento aberrante de tais conceitos por tantos “conservadores”, na extenuante defesa de uma pequena horta “impermanente”.
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Arte: Ivo Milazzo |
Ken Parker procurou desenvolver, narrativamente, uma determinada missão através da sensível complementaridade criativa dos seus autores, como filhos de uma certa época.
A bondade da história e de alguns argumentos é demonstrada pela discreta atenção que as atuais gerações de leitores sempre reservam para as novas reproposições editoriais do personagem em diversos países.
No Brasil, as histórias de Ken Parker saem isoladamente há anos em uma edição limitada de qualidade, adquirível por assinatura, produzida com paixão pelos queridos amigos Rosana e Wagner Augusto, tentando resistir aos altos e baixos do mercado.
Recentemente, chegaram algumas propostas empresariais para uma edição cronológica com a combinação de dois episódios em volume de capa dura. Exatamente como a Mondadori Comics os editou na Itália, em 2014, dando origem ao episódio conclusivo "Até onde chega a manhã". Veremos...
Quanto a mim, levei muitos anos para compreender a verdade sobre o meu trabalho como autor. Quanto a desenhar, escrever, fazer música ou cinema, são meios extraordinários para entrar em ressonância com o usuário desconhecido e consigo mesmo.
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Arte: Ivo Milazzo |
Como é essencial conhecer os próprios deveres e direitos éticos e morais, além daqueles jurídicos, para se relacionar de forma equilibrada com o próximo, produtor ou colega. Só desse modo é possível ter consciência do quanto somos responsáveis pelo nosso futuro, criativo e de vida, sem falsos álibis de hipotéticas “culpas” alheias.
Quais são os artistas brasileiros que tu mais acompanha e admira?
Seja na Itália, seja em outros países, confesso que há algum tempo tenho dificuldade em acompanhar a produção de histórias em quadrinhos por falta de conteúdos e equilíbrio criativo na realização das diferentes propostas editoriais.
Sem dúvida, o hábito de uma determinada formação visual e de leitura condiciona esse julgamento pessoal conteudista, independentemente das habilidades indiscutíveis dos colegas. Acompanho de vez em quando, na revista mensal Internazionale, as tiras de sátira sociopolítica da amiga Laerte.
Então, lamento não poder satisfazer essa curiosidade com senso de causa.
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Arte: Ivo Milazzo |
Estabelecido o target de referência do empresário/produtor/editor do momento, acho que raramente sofri quaisquer limitações à liberdade de expressão pessoal.
No início de Ken Parker, uma vez Sergio Bonelli me pediu para cobrir a bunda de uma mexicana nua que saía do rio. Depois, nunca.
No entanto, ao realizar histórias de personagens criados por outros, estabeleci desde logo um equilíbrio narrativo com o editor de plantão, em respeito à história editorial do personagem e à minha história criativa. O respeito recíproco é essencial para realizar um produto equilibrado. Por ‘equilíbrio’ entendo uma obra satisfatória para o leitor nos conteúdos e estimulante em possíveis reflexões.
A serialidade foi um mecanismo complexo de aprender, com grandes possibilidades de crescimento criativo como também de repetição nas lógicas perversas de publicação.
Em 2003, decidi empreender um caminho diverso para novos estímulos em diferentes encontros sobre projetos e de maior pesquisa pessoal, com o impensável resultado de conhecer e colaborar com o diretor Ettore Scola para a graphic novel "Um dragão em forma de nuvem", extraída de um filme dele não realizado por escolha pessoal.
Ficaria realmente feliz se os livros produzidos nessas experiências também pudessem ser compartilhados por leitores brasileiros.
Um dom criativo tem necessidade de ser cultivado e aprofundado para uma verificação concreta da capacidade individual de engenhosidade. Estar satisfeito significa, em termos literários, “limitar” a si mesmo e perseverar em alguma coisa que, talvez, satisfaça a parte racional de si. Aquela das “necessidades” concretas, que em geral são criadas pelo inconsciente com falaciosas “necessidades preestabelecidas indispensáveis”.
Mas essa é uma outra história.
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Arte: Ivo Milazzo |