segunda-feira, 3 de agosto de 2020

KP#19 "Um Homem Inútil"

Arte: Ivo Milazzo
A reunião virtual de fãs de Ken Parker, fumetti/HQ italiano que é item de devoção do Diário Kenparkerniano, grupo formado no WhatsApp que se organizou com a intenção de cronologicamente reler e debater todos os episódios da epopeia western, também é relatado aqui no Ken Parker Blog.

Confira a trilha sonora de Ken Parker

Review — Ken Parker "Um Homem Inútil" (Vecchi/Tendência). Roteiro: Giancarlo Berardi — Desenhos: Ivo Milazzo. Publicada originalmente no Brasil em Maio de 1980/Editora Vecchi   
Arte: Ivo Milazzo
Um "Homem Inútil" narra a história do Sargento Victor McCabe, um praça do exército alocado em Fort Sill, no Oklahoma, no extremo sul das Reservas Comanche, Kiowa e Arapaho. Após 40 anos de serviços prestados, ele será aposentado, assim como seu pedido para ingressar como explorador civil na unidade é negado pelas autoridades superiores. Desse modo, Vic resolve partir para Salem, no Massachusets, para cuidar de um sobrinho inválido. Mesmo após dar baixa, o Sargento atenderá um último favor do Coronel Jeff Whitaker. Como a agência militar vive um momento de tensão, com forte iminência de conflito com as tribos locais, sem desviar do caminho para Salem, o Comandante pede que ele lidere uma escolta e leve sua esposa, Carol, em segurança até Wichita Falls, no Texas, para que ela possa embarcar num trem rumo a casa de seus pais, onde dará à luz ao primeiro filho do casal.  

Arte: Ivo Milazzo
Um "Homem Inútil" não passa de uma sensível homenagem a um dos maiores cineastas do cinema norte-americano, um dos pais do western, John Ford. A dupla Giancarlo Berardi e Ivo Milazzo não poupa esforços para coroar essa láurea com todas as referências e reverências possíveis, não que isso signifique um simples decalque de fórmulas prescritas e simplesmente reutillizadas — pelo contrário, os realizadores italianos conseguem imprimir uma digital única nesse episódio, inclusive, o tornando um dos prediletos de muitos fãs da saga de Ken Parker.   

Arte: Ivo Milazzo
"Meu nome é John Ford, eu faço westerns". O bordão dito pelo próprio, ilustra a ponta do iceberg para deciframos sua personalidade. Idiossincrasias, temperamento difícil, economia de meios e aversão a concessões à indústria fizeram de John Ford um nome central no cinema do século 20. Em torno de sua figura criou-se uma mitologia tão forte quanto sua obra.  Ford levou quatro Oscars para sua prateleira (até hoje é recordista na categoria, com "O Delator" (1935); "As Vinhas da Ira" (1940); "Como Era Verde Meu Vale" (1941); e "Depois do Vendaval" (1952).   

Arte: Ivo Milazzo
A despedida do Sargento McCabe a uma releitura de "She Wore A Yellow Ribbon/Legião Invencível" (1949), com John Wayne. Já a figura do Sargento O’Hara de "Um Homem Inútil" homenageia o ex-boxeador inglês Victor McLaglen, que trabalhou com John Ford em "O Delator" (1935), filme que lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator. Carol Whitaker brinda a imagem da atriz Maureen O'Hara, habitué no casting dos filmes do cineasta, além de atuar por diversas vezes como partner de John Wayne (sempre ele, Duke, o preferido de Ford).     

Arte: Ivo Milazzo
John Ford invariavelmente usou nas suas películas o pano de fundo de um dos mais belos lugares do imaginário cinematográfico — o Monument Valley, situado na divisa de quatro estados estaduninenses — Utah, Colorado, Novo México e Arizona. O local fica em terras Navajo, que o chamavam de Natani Nez, algo como o Grande Soldado ou O Chefe-Mais-Alto. Milazzo abre o leque da câmera e amplia seu olhar rumo aos grandes espaços, como se estivesse sendo regido pelo velho cineasta. Há precisas alusões aos cenários dos clássicos filmes de faroeste dos anos 1940/50, e particularmente ao Monument Valley, como vemos na página 51 (tomando por base a edição da Editora Vecchi). Esse estudo de reler um estilo passa ainda pelo truque de posicionamento do foco/câmera, visionada pela lente abaixo da linha da cintura do ator, para assim aludir sinônimos de grandeza aos personagens.       

Arte: Ivo Milazzo
Contudo, o protagonismo do Sargento Vic McCabe merece por aqui um pouco mais de nossa atenção. À sombra das lembranças da morte trágica de sua família, um consequente rebaixamento profissional e a luta contra o alcoolismo, ao longo das páginas de "Um Homem Inútil" percebemos no olhar de McCabe um semblante de constante comiseração e tristeza, sendo apresentado por Milazzo quase sempre encoberto pela sombra da aba do chapéu. Essa composição é alterada ao perceber-se novamente útil, como na cena final, quando une-se a Ken Parker para trazer a luz ao bebê de Carol Whitaker. Trata-se de uma clara citação a "3 Godfathers/O Céu Mandou Alguém" (1948), também com John Wayne, refilmado por John Ford devido ao seu perfeccionismo e afeição a história, já que a primeira versão data de 1919. Imediatamente olhando para as vivências de Ken, além de sua experiência acompanhando o parto de éguas (?!), ao sugerir que o cordão umbilical do bebê seja cortado ao modo indígena, ou seja — com os dentes, o leitor é automaticamente reconectado a "Chemako". 

O cenário construído por Ivo Milazzo — o céu estrelado com uma estrela mais iluminada pendente sobre o trio, sugere um tom messiânico, numa sugestiva alusão ao nascimento de Cristo. 

Arte: Ivo Milazzo
Outro aspecto de "Um Homem Inútil" está nas figuras femininas da trama. Primeiramente Carol Whitaker, uma mulher destemida  em sobreviver frente as turbulências ao qual é perigosamente confrontada. O que seria de Ken, Vic e Carol se não houvesse a intervenção da insubmissa Kahgewa, esposa do Chefe Ohiygewa, disposta a manter sua posição de única mulher na tenda do marido. Já Natalie, que ao lado do irmão são os companheiros de viagem de Ken Parker, parece construir um jogo de sedução no intento de chamar a atenção de Ken, que novamente prefere a prudência ao invés de ceder a simples reprocidade do flerte.   

Assim, Ken Parker acaba por ajudar Vic McCabe no resgate de sua autoestima, tal qual, contraditoriamente, McCabe contamina Ken com seu desalento, como podemos ver na página 50. Porém, essa troca mútua os levará ao pleno sucesso da missão. Há ainda constantes reflexões sobre a paternidade, a incapacidade de reproduzir a juventude e a sensação da ineficácia profissional frente o passar dos anos. Felizmente, ao final de "Um Homem Inútil", ficamos com a aprazível sensação de que sempre há espaço para redenções em nossas vidas, ou como sabiamente nos diz Ken — "Cada estação tem seus frutos. Os do outono não são grandes, mas dizem que são os mais saborosos".

Próximo episódio: Histórias de Armas e Trapaças

Arte: Ivo Milazzo

     

Nenhum comentário:

Postar um comentário

A saga de Rifle Comprido contada pelo Blog

Ken Parker Blog retorna à atividade