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Arte: Ivo Milazzo |
A reunião virtual de fãs de Ken Parker, fumetti/HQ italiano que é item de devoção do Diário Kenparkerniano, grupo formado no WhatsApp que se organizou com a intenção de cronologicamente reler e debater todos os episódios da epopeia western, também é relatado aqui no Ken Parker Blog.
Review — Ken Parker "Lily e o Caçador (Vecchi /Tendência). Roteiro: Giancarlo Berardi — Desenhos: Ivo Milazzo. Publicada originalmente no Brasil em Novembro de 1980/Editora Vecchi
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Arte: Ivo Milazzo |
Ao revisar armadilhas de caça nas imediações de Forte Shaw, no Montana, Ken Parker encontra uma espécie de pastor Bergamo preso numa trapeira de metal. O pequeno animal sofre pequenas escoriações, mas ao perceber que está aparentemente abandonado, o explorador resolve levá-lo para o Forte. Durante uma confraternização, Ben, um dos soldados do posto avançado, a batiza de Lily, em homenagem a uma corista da época. Com o exército perigosamente avançando em território indígena, o Forte é atacado pelos Dakota, sendo praticamente dizimado. Ken é gravemente ferido, mas Lily o encontra e bravamente o auxilia a proteger-se numa caverna. Assim, com a ajuda da cadela, Ken precisará transpor sérias dificuldades para sobreviver frente a inúmeras provas de resistência física e mental.
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Arte: Ivo Milazzo |
“Lily e o Caçador” se passa no inverno de 1875, em plena guerra pelas Black Hills. O fato é que em 1873 houve uma significativa depressão financeira nos EUA, colocando o governo Grant numa saia justa. Assim, as ricas jazidas de ouro das Black Hills voltaram a atrair a cobiça de Washington, mesmo que esse interesse conflitasse com o Tratado de Fort Laramie, assinado em 1868, após o fim da guerra de Nuvem Vermelha. O acordo, mesmo impondo a passagem de uma ferrovia, definia como Reserva Sioux as terras onde também estavam as jazidas auríferas. Diante da recusa dos dois chefes indígenas em ceder as sagradas Paha Sapa (como os índios chamavam as Black Hills), o agora pressionado Presidente Ulisses Grant decide novamente entrar em pé de guerra com os índios. E assim, concomitantemente, tratado após tratado são descumpridos pelo governo norte-americano (como veremos mais adiante em KP). Essa é a realidade ao qual Ken Parker tenta exemplificar em poucas palavras (e com a mínima paciência) ao ingênuo Capitão de Forte Shaw, logo no início de “Lily e o Caçador”. Em suma — os índios não mais acreditam em acordos firmados entre as partes, e desse modo, a construção de um forte como desculpa de barreira contra o avanço do homem branco não mais os convencem. A imensa Guernica de Milazzo que expõe a brutalidade do conflito entre os Dakota e o exército (página 29, tomando por base a edição da editora Vechi), é uma espécie de releitura do que o desenhista já havia feito na página 94 de "Homicídio em Washington", expondo sua fantástica capacidade de síntese em emaranhar tantos personagens e ações em apenas um quadro.
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Arte: Ivo Milazzo |
O questionamento de Ken Parker como um profissional civil à serviço do exército em meio a eminência do extermínio das nações indígenas, é uma sombra nefasta que induz o scout à contínua reflexão desse papel, ampliado por suas percepções e idealismo. Ken caminha a passos largos para quebrar o círculo vicioso dessa incoerência. Ao ser gravemente ferido, em pleno isolamento e exposto às contradições da natureza, reflete dramaticamente sobre a vida que leva, ao mesmo tempo em que amarga uma completa purgação física e espiritual. Novamente a tênue linha entre bem/mal — certo/errado — afronta pensamentos e ações, mesmo quando no limite de suas forças, à beira da inanição, Ken consterna-se ao deixar um filhote de urso órfão. A estada na caverna passa a ser um visionamento filosófico: — mas afinal, qual o nosso lugar no mundo? Lily é sua ‘ouvinte' e 'confidente’, presença física dessas reflexões, sob a bênção de um ser subserviente que o acaricia com extrema entrega e comiseração — "é bom morrer ao lado de um amigo", confessa. E na órbita dessa perspectiva, se em “Um Homem Inútil” Ken Parker afirma num diálogo que não tem filhos, dessa vez ao recordar as pessoas que ama não esquece de citar o enteado em Boston, demonstrando um caminho de aceitação a paternidade.
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Arte: Ivo Milazzo |
Novamente em “Lily e o Caçador” Giancarlo Berardi retorna aos fabulários, semelhante ao recurso utilizado em “Chemako”, mas dessa vez o manipula para ilustrar um devaneio de Ken, em longo trecho onírico ao qual revisita a lenda do Rei Arthur. O monarca de Camelot tem as feições de seu pai, assim como Guinevere se parece com sua mãe. É também nessa onda de recordações que o scout ferido canta uma antiga canção, "Alabama Bound", tema recorrente entre os pioneiros.
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Arte: Ivo Milazzo |
Outra referência celebrada em “Lily e o Caçador” está na recorrente citação a "Jeremiah Johnson" (1972), filme de Sidney Pollack com Robert Redford. É quando Ken Parker encontra o cadáver congelado do ex-dono de Lily, Eliah Boone, com um bilhete relatando as inacreditáveis habilidades da cadela. No filme, Jeremiah se depara com Hatched Jack, um caçador petrificado com seu rifle, muito semelhante a representação de Ivo Milazzo. Outra lembrança ao longa metragem está na dramatização de como Ken Parker é atingido por lanças e flechas, assim como há paridades nas imagens de frio extremo e a constante superação do homem solitário em constante perigo.
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Arte: Ivo Milazzo |
Já falamos aqui no Ken Parker Blog de como o universo feminino é frequentemente explorado por Giancarlo Berardi, espécie de contraponto ao ambiente masculinizado do western. Essa visão feminina seria ampliada anos depois com Julia Kendall. Entre as várias personagens exploradas nessa inicial cadeia de acontecimentos podemos destacar Tecumseh, Belle McKeever, Carmen Gutierrez, Enja, Elaine Walsh, Pat O’Shane, Carol Whitaker, Brenda Taylor — mulheres à frente de seu tempo, ou detentoras de uma rara pujança nessa coexistência uníssona ao protagonismo do feminino. Lily, o pastor Bergamo fêmea de “Lily e O Caçador” pode ser inclusa nessa afetiva galeria que o universo de Ken Parker abraça.
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Arte: Ivo Milazzo |
Por mais que não haja referência a escritora e sufragista norte-americana Lillie Devereux Blake, uma das grandes feministas da segunda metade do Século XIX, podemos pensar em conexões entre ambas. Os ensaios e romances publicados de Blake refletem sua luta contra o senso comum de que as mulheres são essencialmente piedosas, puras, domésticas e submissas. Assim, por mais que saibamos que a imagem de Lily foi inspirada por Lilla, cadela de Milazzo, a citação à Tiger Lily, a corista apelidada de Torta-de-Queijo (ao qual não encontramos referência) é uma feliz coincidência que pode até mesmo inconscientemente homenagear Blake, também chamada de Tiger Lily. A cadela Lily não é um simples um animal como qualquer outro — ela não apenas resguarda Ken Parker, como também o provém de alimentação e o abastece de uma cativante presença física contra a solidão, demonstrando ser dotada de um rara inteligência e percepção.
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Arte: Ivo Milazzo |
Outra lembrança evocada em “Lily e o Caçador” passa por “Sempre ao seu lado” (2009), com Richard Gere, refilmagem de “Hachiko Monogatari”, filme japonês de 1987. A história fala de um Professor universitário que adota um cão de rua abandonado, com quem cria laços tão fortes que o animal o acompanha até a estação de trem diariamente enquanto ele sai para trabalhar e vai "buscá-lo" na hora do retorno. Um dia, durante a aula, o professor morre, mas o cão não desiste de esperá-lo, anos a fio, na esperança de rever o dono.
A última imagem de Lily, provavelmente retornando a companhia de seu antigo dono após ter auxiliado Ken Parker a recuperar a saúde e ser reencontrado por caçadores, nos conduz a mesma fidelidade além da vida. “Lily e Caçador” chegou as bandas europeias no final da década de 1970, e por mais que hoje a história nos pareça tão familiar, a HQ pode ser considerada extremamente inovadora, principalmente ao alçar um cachorro como protagonista de um western, tornando Lily um dos recortes mais reflexivos e comoventes de Ken Parker.
Próximo episódio: Pele-Vermelha
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