domingo, 23 de agosto de 2020

KP#30 Lar Doce Lar

Arte: Ivo Milazzo 
A reunião virtual de fãs de Ken Parker, fumetti/HQ italiano que é item de devoção do Diário Kenparkerniano, grupo formado no WhatsApp que se organizou com a intenção de cronologicamente reler e debater todos os episódios da epopeia western, também é relatado aqui no Ken Parker Blog.

Review — Ken Parker "Lar Doce Lar" (Vecchi /Tendência). Argumento: Giancarlo Berardi — Desenhos: Ivo Milazzo. Publicada originalmente no Brasil em Abril de 1981/Editora Vecchi

Arte: Ivo Milazzo
Na linguagem atual, é como se fosse o fechamento da primeira temporada de uma série. Basta pensarmos que após oito anos, finalmente Ken Parker retorna ao ponto de partida, de volta a cenários onde já o vimos em “Vingança/Rifle Comprido”, primeiro episódio do personagem. A caminho da casa dos pais, o primogênito que ainda não sanou todas as feridas chamejadas pela morte do irmão mais novo, resolve também visitar o velho amigo Sam ‘Puncho’ Gaine. É quando descobre através da sobrinha de Puncho, Jeanne, que o caçador falecera um ano antes, atingido mortalmente numa caçada, ou seja — morreu fazendo o que mais amava.     
Arte: Ivo Milazzo
Estamos em 1876, passado praticamente uma década após a morte do Bill — que agora teria 25 anos — algumas memórias se assomam aos reencontros. Na cabeça de Ken, certamente ele imagina Bill Parker como pai do bebê de Jeanne, o último dos flertes daquele jovem que na época tinha apenas 17 anos. Ao reencontrar a família em Billings, no Montana, Ken Parker ainda revê o velho amigo Dick Elliot, um encrenqueiro que acaba de roubar um banco e está sendo perseguido por um agente da Pinkerton. Durante a estada na cidade onde cresceu, ao lado de Dick, Ken não apenas irá reviver agradáveis instantâneos do passado e se deliciar com a comida da mamãe, pois esse retorno também deflagrará uma série de infortúnios nesse não tão doce lar.

Arte: Ivo Milazzo
Lar Doce Lar” consegue sintetizar em apenas 100 páginas uma clássica história que pode facilmente ser transportada para qualquer época — a volta de um filho até a casa dos pais. As diferentes visões entre pais e filhos, as memórias afetivas compartilhadas entre ambos, os momentos termos e difíceis, afora o amor que permanece perene e incorruptível. Giancarlo Berardi se utiliza de ingredientes que se desvelam gradativamente, como também entrecortes amarrados numa perfeita sutura dramática. Estamos falando de um dos recortes mais afetivos da trajetória de qualquer ser humano — estar entre os seus. E essa afetividade também se dilata no reencontro com Dick, um amigo de infância que retornará mais adiante em "Nos Tempos do Pony Express". 

Caubóis cantando "Oh, Susanah", de Stephen Foster 
A edição lançada pela Vecchi em abril de 1981 certamente não faz jus a um dos mais sensacionais trabalhos de Ivo Milazzo, pois na época, pelo menos aqui no Brasil, “Lar Doce Lar” foi lançado numa publicação borrada, descuidada, resultando numa HQ que infelizmente macula o perfeccionismo das ilustrações. Problemas continuaram na edição da Tendência, novamente mal resolvida graficamente. Impressões coloridas originárias da França, Espanha e Portugal, além da elogiada reimpressão da italiana Mondadori, publicações que redimensionam ainda mais a importância de "Lar Doce Lar" dentro do espectro da série.

Arte: Ivo Milazzo
A sequência das primeiras 40 páginas (tomando por base o lançamento da editora Vecchi), alterna o retorno de Ken e Dick ao mesmo destino, como também revela um desenhista que muitas vezes fala através do pincel, sem necessidade de falas, principalmente quando nos conta o trajeto escolhido por Ken Parker, revivendo os lugares por onde cavalgou na juventude, até o tão esperado reencontro com os pais. As aproximações e distanciamentos de câmera para iniciar e concluir narrativas introduz inteligentes sacadas, como no caso do antigo Trading Post do primeiro episódio, ao longe. Ken se aproxima e quando a câmera novamente distancia, o rancho ressurge no horizonte, a mesma cena em duas perspectivas — presente e passado. 
Edições colorizadas de Ken Parker nunca ganharam unanimidade no crivo de muitos fãs da série, mas sumariamente se justificam em “Lar Doce Lar”, quando um inspirado Ivo Milazzo nos presenteia com algumas das mais perfeitas sequências de páginas da história das HQs. Estamos falando de uma de suas obras-primas, de uma sucessão de aquarelas que poderíamos enquadrar e colocar na parede, peças visuais que falam por si.        

Arte: Ivo Milazzo
“Lar Doce Lar” ainda nos leva aquela saudosa sensação de estarmos assistindo um bom western, um sentimento recorrente nos leitores de Ken Parker. Nesse episódio, essa impressão se amplia, projetando no inconsciente imagens em tecnicolor, transmutando a viagem do papel diretamente para a tela do cinema. Além da intensa carga dramática, o roteirista alterna sequências onde a violência salta pelas bordas do quadro, como ainda intercala passagens cômicas, à exemplo da participação de Stan Laurel e Oliver Hardy, uma das mais lendárias duplas do humor mundial, conhecidos por aqui como O Gordo e o Magro. Esse recorte é uma espécie de première do que veremos mais à frente, tanto em “Boston” quanto em “Terras de Heróis”, quando Beradi/Milazzo promovem uma profusão de citações e láureas a icônicos personagens da dramaturgia mundial. 
Arte: Ivo Milazzo
O carinho de Ken Parker pelas crianças novamente se manifesta em “Lar Doce Lar”, é o que podemos perceber quando o scout resolve entreter o filho de Lena Kolber enquanto a mãe discute a relação com Dick. A mesma Lena ao qual Ken se apaixonou ainda jovem e que preferiu a companhia do amigo. De imediato — a lembrança de Theba emerge na lembrança. A ligação fragmentada do reverendo Elliot com seu filho, a dureza das relações e a incompatibilidade entre ambos, remontam a mitologia do filho pródigo. Só que neste caso não parece haver arrependimentos ou apaziguamento entre eles, pois tanto o Reverendo (com imagem inspirada no ator Ward Bond), um homem cansado em tentar dobrar a personalidade do filho, quanto a própria essência do caráter de Dick, e sua escolha pelo caminho do crime, com visíveis índoles egoístas e insensíveis tanto do pai quanto do filho, ampliam os contrastes e afrontam conciliações.

Logo após "Lar Doce Lar", Ken Parker dará uma guinada em sua vida, protagonizando escolhas que o levarão a ampliar suas visões humanistas de mundo, numa sequência de fatos que o levarão até Boston, e o tão esperado reencontro com Theba e Belle McKeever. Mas antes disso, muita água ainda vai cruzar debaixo da ponte que levará Ken Parker até os seus.   

Arte: Ivo Milazzo


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