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Arte: Ivo Milazzo |
A reunião virtual de fãs de Ken Parker, fumetti/HQ italiano que é item de devoção do Diário Kenparkerniano, grupo formado no WhatsApp que se organizou com a intenção de cronologicamente reler e debater todos os episódios da epopeia western, também é relatado aqui no Ken Parker Blog.
Confira a trilha sonora de Ken Parker
— Ken Parker "Os Pioneiros" (Vecchi /Tendência). Argumento/roteiro: Giancarlo Berardi — Desenhos: Giorgio Trevisan. Publicada originalmente no Brasil em Agosto de 1983/Editora Vecchi
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Arte: Giorgio Trevisan |
Rumo a Boston, de passagem por uma localidade do Kansas, Ken Parker encontra um homem desacordado em meio uma tempestade de areia. Ele é Harvey Andrews, dono de um rancho localizado a trinta milhas de Garden City. Advinda de Bismarck, no Missouri, com escassez de comida e água, a família Andrews sobrevive precariamente na pequena propriedade. Assim, ao levar o rancheiro ferido até sua casa, Ken ainda conhece Sarah, a esposa de Harvey, e Jeff, seu filho mais velho, além de Harry, o caçula, gravemente acamado. Sensibilizado com a miséria dos Andrews, Ken Parker cede seus víveres para uma família absolutamente desprovida de alimento. Após se recuperar, no dia seguinte Harvey vai até Garden City buscar um médico que possa salvar a vida de seu filho mais novo.
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Arte: Giorgio Trevisan |
Além das dificuldades vividas pela inexperiente família Andrews, simbolizado no despreparo do patriarca, o centro dramático de "Os Pioneiros" está na relação entre Ken Parker e Sarah Andrews. Ken, aos olhos de Sarah, é visualizado como um aventureiro repleto de histórias e fascínio, e o homem que consegue revitalizar a própria feminilidade da jovem esposa, gerando uma contida tensão romântica que também é percebida pelo seu marido. Sempre racional e pragmático, Ken Parker dessa vez parece ceder a seus irrevogáveis preceitos e escrúpulos, por mais que o envolvimento romântico com Sarah não seja realmente consumado. A leitura de um livro de contos de Washington Irving (1783-1859) vira uma desculpa esfarrapada para a troca de figurinhas entre ambos, velados pela intimidade do celeiro da propriedade, local onde o ex-scout do exército está alojado — ela finge que lê, ele dissimula acreditar, percutindo um perfeito jogo de sedução e aproximação. Vulneráveis ao sabor desse improvável romance, Ken e Sarah absorvem e ecoam as pluralidades desse envolvimento — se por um lado percebemos um tipo de desconforto pelo sentimento nutrido por ambos, em outro viés essa atração passo a passo se amplia.
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Arte: Giorgio Trevisan |
A cumplicidade entre Ken e o jovem Jeff também merece nossa atenção. Assim como fez com Theba em "Chemako", percebemos uma espécie de afeição entre mestre e aprendiz. Sempre de uma forma espontânea e generosa, Ken Parker ensina o garoto a atirar com uma arma de fogo; mostra ao jovem como encontrar legumes e verduras selvagens para subsistência da família; debate amistosamente sobre espiritualidade e religião — "Eu não me aborreceria se você fosse meu pai", diz o garoto na página 76 (tomando por base a edição da Editora Vecchi), símbolo imaterial desse bem-querer. Já a influência de Ken Parker sobre Harvey Andrews pode ser resumida em apenas uma palavra — coragem! Aos poucos, nas conversas, em suas atitudes e na revelação de sua imensa sabedoria como filho de colonos e como homem acostumado a sobrepor adversidades, o aventureiro que passa pela vida da família Andrews deixará ensinamentos que certamente nunca mais serão esquecidos.
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Arte: Giorgio Trevisan |
Para dramatizar o crescente destempero emocional de Sarah, Giancarlo Berardi nos apresenta "This Old Man", uma cantiga de ninar dos anos 1880, e ainda muito popular nos CDs infantis norte-americanos. O perturbador olhar da mãe a embalar o corpo desfalecido do filho é revelado apenas no penúltimo quadro da página 30, para logo depois afastar a câmera dessa visão, quando então nos deixa à sombra da melodia entoada pela solitária mulher — "Sopre, maldito, sopre", diz ela sobre o imparável vento da desolação. A arte de Giorgio Trevisan consegue emular com irrefutável perfeição todas as nuanças desveladas em "Os Pioneiros". A complexidade das expressões, os rostos, os olhares, os panoramas descritivos onde qualquer linha passa a ser desnecessária — há poesia alinhada ao discurso que é evocado na história.
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Arte: Giorgio Trevisan |
Ao final, como autêntico cavalheiro, mesmo que a emoção, 'a mais pesada das drogas' (como disse certa vez o jornalista Reinaldo Moraes) aflua sobre a superfície dos fatos, percebemos que, no caso de Ken Parker, o caráter sempre está à frente de qualquer decisão ou sentimento, um silencioso embate rigorosamente vencido pela razão. "Os Pioneiros" soa como fábula, uma história já contada milhares de vezes, mas recontada magistralmente por Giancarlo Berardi e Giorgio Trevisan — obra-prima!
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Arte: Giorgio Trevisan |
Curiosidades: Garden City, a cidade próxima ao rancho dos Andrews, tem o nome idêntico a fictícia urbe onde reside outra personagem de Giancarlo Berardi — Julia Kendall. Lançada em agosto de 1983, "Os Pioneiros" marcaria a primeira das despedidas temporárias de Ken Parker das bancas de revistas, pois poucas semanas depois a Editora Vecchi fecharia suas portas. Assim, os últimos seis números na série original não seriam publicados. Apenas sete anos depois, em 1990, a recém-fundada Best News, anunciaria sua intenção de publicar a série a partir do número 54. Mas essa é outra história...
Próximo episódio: "Boston"
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Arte: Giorgio Trevisan |
Review magistral, à altura de Os Pioneiros, que p'rá mim, é uma daquelas histórias do KP que sempre revisito, mesmo que não seja necessário, já que lembro de toda ela, imagem por imagem.
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